sábado, 18 de julho de 2020

Sabina Spielrein, pioneira da psicanálise


No ano de 1904 pela primeira vez se realizou um tratamento psicanalítico fora da cidade de Viena e sem a supervisão direta de Sigmund Freud, o fundador da ainda jovem psicanálise. O médico a aplicar o tratamento era Carl Gustav Jung, discípulo de Eugene Bleuler, diretor da Clínica do Hospital Burghölzli, ligada à Universidade de Zurique, na Suíça. Sua paciente era a jovem russa Sabina Spielrein.
Foi esse tratamento que levou a que se estabelecesse a relação entre Freud e seu mais célebre discípulo e posterior dissidente, fundador da psicologia analítica, Jung. Muito mais se fala desse tratamento, contudo, retratado, por exemplo, no filme de David Cronenberg, “Um método perigoso”, do que do impressionante e brilhante destino de sua paciente, Sabina Spielrein. Não deixa de ser tristemente representativo de nossa sociedade que essa mulher seja lembrada muito mais pelo fato de ter sido amante de Jung do que pelas contribuições fundamentais que deu à psicanálise e outras áreas do conhecimento.

O “esquecimento” de Sabine Spielrein por cerca de sessenta anos da história da psicanálise, e na qual ainda não foi reinserida com a justiça devida, não é um mero acaso, mas é uma expressão bastante nítida de como uma sociedade patriarcal e machista se manifesta em cada tentativa das mulheres de furar esse cerco. Assim, foi apenas em 1977, quando o analista junguiano Aldo Carotenuto publicou as cartas trocadas entre Sabina, Freud e Jung que ela voltou a ser discutida, ainda que o peso da “anedota” de seu caso amoroso com Jung tenha, mais uma vez, revelado o peso do patriarcado, deixando a obra de Spielrein em segundo plano.

A “segunda analista”

Sabina não foi a primeira mulher a penetrar o então restrito círculo dos pioneiros da psicanálise que se reuniu em torno de Freud. Dois anos após a fundação da Sociedade Psicanalítica de Viena, ocorrida em 1908 com vinte e dois membros – todos homens – foi proposto, por iniciativa de Paul Federn, a admissão da primeira mulher: Margarete Hilferding. Além de uma das primeiras mulheres a se formar na Faculdade de Medicina de Viena, era militante socialista no Partido Social-Democrata da Áustria (SPD), junto a seu companheiro, o célebre economista Rudolf Hilferding, cujo livro “O Capital Financeiro” foi uma das principais fontes econômicas para “O Imperialismo”, de Lênin. É provável que não apenas a condição de mulher, mas também a de militante socialista, tenha pesado para levantar a objeção de Isidor Sadger, membro da sociedade. Freud, então, declarou que seria uma “grosseira inconsistência” se as mulheres não pudessem, por princípio, fazer parte da sociedade. Então, precedendo a votação sobre a adesão específica de Margarete Hilferding, há uma votação sobre se seriam aceitas mulheres na sociedade: a adesão destas é aceita por onze votos a favor e três contra.

Finalmente, na reunião de 27 de abril de 1910 é votada a adesão de Hilferding, após uma discussão em que as posições expressam uma impressionante misoginia, inclusive por parte dos que defendem a aceitação de Hilferding. Inclusive o próprio Freud, defendendo a aceitação da candidata, chega a afirmar que “a mulher nada ganha em estudar, pois, no conjunto, não melhorará por esse caminho, pois as mulheres não podem igualar-se aos homens na obtenção da sublimação da sexualidade”. No entanto, também afirma que na misoginia dos homens há uma atitude infantil. De acordo com Elisabeth Roudinesco, a opinião de Freud sobre a menor capacidade de sublimação das mulheres será alterada no futuro. A ata da reunião é descrita pormenorizadamente por Renata Cromberg em seu excelente artigo “Primeiras psicanalistas”.

É interessante notar que, apesar de um posicionamento político francamente conservador, e de posições por vezes problemáticas sobre o papel das mulheres, Freud tenha defendido enfaticamente a admissão das mulheres na psicanálise, bem como em outras ocasiões defendido que essas deveriam ter um papel protagonista para o estudo do psiquismo das mulheres em questões que ainda considerava não estudadas profundamente. Dessa vez, a opinião de Freud prevaleceu contra o obscurantismo de alguns de seus colegas, mas nem sempre foi assim: quanto à admissão de homossexuais, ele teve seu voto vencido, tendo a IPA (International Psychoanalytical Association) rejeitado sua admissão como psicanalistas, com uma regra que nunca foi escrita mas que barrou o acesso de homossexuais à formação psicanalítica por décadas a partir de 1921. Ainda hoje, a homofobia persiste com força, ainda que não ouse se proclamar tão abertamente, na maior parte das associações psicanalíticas. Outra votação em que Freud quase foi derrotado foi em relação a não admitir a entrada da Sociedade de Psicanálise de Moscou em decorrência do governo operário russo (da qual Sabina Spierlman foi uma das fundadoras). Essas e outras propostas reacionárias que contaram com a objeção de Freud eram consequência da influência de Ernst Jones, um dos grandes responsáveis pela domesticação da psicanálise para que ela pudesse ter uma convivência “pacífica” com o regime nazista mesmo após o exílio de Freud em Londres. Em nome da “neutralidade”, a psicanálise oficialista foi cúmplice de inúmeras outras violações, como o regime militar no Brasil.

O pioneirismo teórico

Sabina Spielrein inicia seu tratamento com Jung em 1904 com apenas dezoito anos e, após a conclusão, forma-se em medicina. Em 1911 ingressa na Sociedade Psicanalítica de Viena, cerca de um ano após a admissão de Hielferding. Suas publicações dessa época colocam Sabina na vanguarda de questões de primeira importância para o desenvolvimento da teoria psicanalítica.

Na medicina, sua dissertação de conclusão de curso, intitulada “O conteúdo psicológico de um caso de esquizofrenia (dementia praecox)” foi um dos primeiros trabalhos a relatar minuciosamente a aplicação da técnica psicanalítica em um caso de esquizofrenia – termo que havia sido apenas recentemente cunhado por Bleuler para designar o que até então era conhecido como “demência precoce”. A dissertação abordava o conteúdo do tratamento de uma paciente e a relação entre sua fala e o conteúdo sexual reprimido, e, ao lado de trabalhos de Jung, Bleuler e Karl Abraham foi fundamental para efetivar a psicanálise como uma terapia efetiva em relação aos pacientes psicóticos.

Em 1912, Spielrein se adianta em nove anos em relação a Freud ao elaborar o conceito de pulsão de morte ou de destruição, em seu artigo “A destruição como causa do devir”. É a partir da análise da esquizofrenia e da neurose, da realização artística e da entrega amorosa, que ela afirma que o conflito entre as pulsões sexuais de vida e as pulsões de destruição e de morte fundem-se na criação do devir, do movimento criador.

Ainda nesse mesmo ano, publica “Contribuições para o conhecimento da psique infantil”, sendo também uma importante desbravadora do terreno da psicanálise com crianças, bem anteriormente do que a historiografia oficial celebra com Anna Freud e Melanie Klein, cuja primeira comunicação diante da sociedade psicanalítica, sete anos depois, seria precedida ainda por dez artigos de Spielrein sobre a análise de crianças. Esse tema seria central em sua produção, dando origem a outros artigos como “A origem das palavras infantis mamãe e papai – sobre o problema da origem e desenvolvimento da linguagem”, de 1920, ou “Algumas analogias entre o pensamento da criança, o do afásico e o pensamento subconsciente”, de 1923. Nesse campo, sua atuação prática também seria grandiosa, como veremos a seguir em relação à sua atuação na Rússia.

Spielrein também teve uma importante parceria com Jean Piaget, que fez análise com ela durante oito meses, seis dias por semana. Juntos, trabalharam com Eduard Claparède no Instituto de Psicologia Experimental e de Investigação do Desenvolvimento Infantil Jean Jacques Rousseau. Desenvolveram em conjunto um trabalho sobre as origens do pensamento e da linguagem e uma teoria da simbolização que, contudo, nunca foi escrita antes que seus caminhos se separassem.

Levando a psicanálise ao país dos sovietes

Após a colaboração com Piaget e Claparéde, Spielrein chegou a residir em Berlim a pedido de Freud, que julgava sua contribuição ali importante. Contudo, em 1923, Sabina partiria para a Rússia revolucionária. Ali, por intermédio de Trotski, que sempre defendera o incentivo e a plena liberdade para o desenvolvimento das investigações psicanalíticas, Spielrein seria muito bem recebida pelo governo operário. Foi convidada por Vera Schmidt a dirigir a clínica psicanalítica para crianças que aquela havia fundado, bem como a inédita experiência do jardim da infância psicanalítico (mais conhecido pelo nome oficial de Lar Experimental para Crianças ou Casa Branca), ambos construídos sob o incentivo do governo soviético, que, mesmo em meio à imensa miséria gerada pela sucessão de duas guerras e do poderoso ataque imperialista à revolução de outubro, encontrou recursos para fomentar essas fascinantes iniciativas. Spielrein também assumiu a chefia do departamento de pedologia (uma ciência soviética que estudava o desenvolvimento da infância, mais um exemplo de como as crianças tinham o primeiro plano nas prioridades do Estado operário) na Universidade de Moscou.

Fundou então, junto a Dimitrievitch Ermakov e Moshe Wulff, a Sociedade Psicanalítica na Rússia, que chegou a ser a mais numerosa de sua época. Sem dúvida, não se poderia ver como simples “coincidência” esse impressionante florescimento da psicanálise na Rússia, justamente no período revolucionário em que houve um maravilhoso desenvolvimento das artes e ciências no rastro da revolução, enquanto na Europa a psicanálise se encontrava cada vez mais estrangulada pelo ascenso do nazi-fascismo que, quando não procurou destruir diretamente a teoria psicanalítica, como com as fogueiras de livros na Alemanha, acabou por “domesticar” a psicanálise, o que gerou seus efeitos devastadores na IPA (Associação Internacional de Psicanálise) sob o comando de Ernst Jones e a conivência de Freud, que mesmo tendo sido obrigado ao exílio em Londres, desejava que a psicanálise mantivesse a posição de “neutralidade” para que pudesse sobreviver em meio ao acirramento bélico que começava a se gestar.

O período de glória da psicanálise na Rússia soviética duraria mais alguns anos, durante os quais Spielrein desenvolveu uma intensa atividade, atuando como analista didata, proferindo seminários e conferências, e emergindo como um verdadeiro pólo de atração de novos cientistas e analistas. Ocupou nesse período três cargos: o já mencionado na cátedra de Pedologia da Primeira Universidade de Moscou; o de consultora médica pedagógica da Terceira Internacional em uma vila de crianças (mais uma experiência social fruto da revolução, muito bem descritas no livro “Mulher, Estado e Revolução” da historiadora Wendy Goldman); e, finalmente, como colaboradora científica no instituto psicanalítico estatal (provavelmente o único instituto público a financiar a psicanálise no mundo nessa época). Sua influência nessa época foi decisiva para nomes como Vygotsky, Leontiev e Luria, três dos mais importantes pioneiros da psicologia soviética.

No entanto, o estrangulamento da revolução nas mãos do estalinismo significou também o fim das possibilidades de desenvolvimento da psicanálise na URSS. Considerada como uma “ciência burguesa” e coberta de injúrias pelo pensamento burocrático e castrador da camarilha que expropriou o poder dos sovietes e da classe operária, a psicanálise foi rapidamente sendo extirpada da União Soviética. Emblematicamente, a Sociedade Psicanalítica Russa foi dissolvida em novembro de 1929, o mesmo mês em que era exilado o dirigente revolucionário Leon Trotski, que havia sido e permaneceria sendo o mais fervoroso combatente pelo legado revolucionário russo, e também quem havia lutado para que a psicanálise tivesse todo o espaço e os recursos necessários para se desenvolver no país dos sovietes. Então, Sabina retornou à sua cidade natal, Rostov sobre o Don. Em 1936, a psicanálise é oficialmente proibida pelo estalinismo. Diante disso, Sabina retornou à música, à qual já havia se dedicado profissionalmente entre 1913 e 1918, e pela qual era apaixonada. A partir de 1929 foi proibida de deixar a Rússia; em 1937, seus irmãos são deportados aos Gulags; em 1942, durante a ocupação nazista, Sabina e suas duas filhas foram assassinadas pelas tropas de ocupação.

Assim, com apenas 56 anos, Sabina Spielrein morreu. Sua vida foi testemunho de uma mulher que superou o peso colossal de uma sociedade patriarcal, vencendo a patologia psíquica que lhe afligiu, a discriminação, contribuindo para o entendimento da mente humana e sendo uma pioneira na investigação. É também um testemunho valioso da grandiosa contribuição que a revolução socialista pode dar para o desenvolvimento do conhecimento humano no sentido da emancipação, bem como do poder castrador da burocratização de um processo revolucionário em curso.

Referências:

http://revistapercurso.uol.com.br/index.php?apg=artigo_view&ida=129&id_tema=54

http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-58352012000100007


terça-feira, 14 de julho de 2020

Crise, mal-estar e violência: instrumentalização política da pulsão de morte e da moral sexual




texto apresentado originalmente no colóquio interno do Centro de Estudos Psicanalíticos (CEP) em março de 2019

Conflito e dualidade em Freud: pulsões e recalque; indivíduo e sociedade

Na obra de Freud, o conflito entre forças antagônicas ocupa um lugar central. Conflitos psíquicos no seio do indivíduo marcam a fundação da psicanálise, quando Freud se dá conta que o jogo de forças entre pulsões, o seu recalque e o retorno do reprimido estão na base do adoecimento neurótico. “A teoria da repressão é a pedra angular sobre a qual repousa toda a estrutura da psicanálise. É a parte mais essencial dela (...)”. (FREUD, 1914, p. 10), dizia em 1914.

A dualidade e o conflito se expressam em cada passo da construção teórica freudiana. Isso se verifica em outro elemento da teoria psicanalítica no qual a dualidade é a marca indelével: a teoria das pulsões. Divididas, a princípio, entre pulsões sexuais e de autoconservação, reformuladas como pulsões do eu e pulsões objetais, depois encontram nova configuração na dualidade entre as pulsões de Eros e Thanatos, ou pulsões libidinais – conjunto que passa a englobar os dois grupos anteriormente opostos – e as pulsões de morte, que visam o retorno ao estado inorgânico, e abrangem a destrutividade e agresssividade.

Essas dualidades se apresentam como conflitos psíquicos, mas se encontram em sua origem intimamente ligadas à relação do eu com o outro, ou seja, da inserção do sujeito no tecido social. Freud explicita isso ao dizer que

A oposição entre psicologia individual e psicologia social ou das massas, que à primeira vista pode nos parecer muito significativa, perde muito de sua nitidez ao ser examinada mais a fundo. É verdade que a psicologia individual está orientada para o ser humano singular e investiga os caminhos pelos quais ele busca alcançar a satisfação de suas moções de impulso, só que ao fazê-lo, apenas raramente, sob determinadas condições excepcionais, ela desconsidera as relações desse indivíduo com outros. Na vida psíquica do indivíduo, o outro entra em consideração de maneira bem regular como modelo, objeto, ajudante e adversário, e, por isso, desde o princípio, a psicologia individual também é ao mesmo tempo psicologia social nesse sentido ampliado, porém inteiramente legítimo”. (FREUD, 1921, p. 35)



Assim, é recorrente na obra de Freud a constatação de que os conflitos psíquicos são fruto da expressão internalizada dos conflitos entre o outro/sociedade e o indivíduo. O conflito, na primeira dualidade pulsional, está ligado ao embate entre o princípio do prazer, na realização das pulsões sexuais, e o choque com a necessidade de sobrevivência, manifesta nas pulsões de autoconservação e que expressam o princípio de realidade.

A repressão das pulsões como base da vida social

Em 1908, Freud coloca grande ênfase no conflito entre a moral social e possibilidade de realização das pulsões sexuais, discutindo isso no texto “moral sexual civilizada e doença nervosa moderna”. Ali, aparecem dois aspectos fundamentais da visão de Freud sobre o tema: em primeiro lugar, de que a repressão sexual é a base da civilização, pois é o recalque daquelas pulsões que entram em conflito com a realidade externa que permite o convívio de acordo com as regras coletivas e, portanto, a vida “harmoniosa” em grandes grupos. Por outro lado, Freud chama a atenção para a forma como os exageros dessa repressão originam a neurose. A concepção de que as pulsões sofrem repressão e recalcamento sob o peso da moral – que depois ganharia sua representação psíquica no conceito do Super-eu – é desenvolvida plenamente em “Totem e Tabu”, em 1913, texto que também coloca como peça central dessa repressão a castração e o Complexo de Édipo, defendidos por Freud como universais. Em 1920, em “Além do princípio do prazer”, estende a teoria para abarcar as pulsões de morte. Em 1930, com “O mal-estar na civilização”, Freud leva a fundo os temas do conflito entre indivíduo e sociedade.

Nesse texto, Freud dá novamente grande ênfase à repressão sexual, denunciando seus excessos:

A escolha de objeto do indivíduo sexualmente maduro é reduzida ao sexo oposto, a maioria das satisfações extragenitais é interditada como perversão. A exigência, expressa em tais proibições, de uma vida sexual uniforme para todos, ignora as desigualdades na constituição sexual inata e adquirida dos seres humanos, priva um número considerável deles do prazer sexual e se torna, assim, a fonte de grave injustiça. (...) o que permanece isento de proscrição, o amor genital heterossexual, é ainda prejudicado pelas limitações da legitimidade e da monogamia. A civilização atual dá a entender que só quer permitir relações sexuais baseadas na união indissolúvel entre um homem e uma mulher, que não lhe agrada a sexualidade como fonte de prazer autônoma e que está disposta a tolerá-la somente como fonte, até agora insubstituível, de multiplicação dos seres humanos. (FREUD, 1930, p. 68-69)

E agrega um julgamento categórico a essa moral: “isso, naturalmente, é algo extremo. Sabe-se que demonstrou ser inexequível mesmo por breves períodos”.

A essa questão, talvez se possa objetar que a severidade da moral sexual já não é a mesma de 88 anos atrás. Mas percebemos a permanência desses valores, por exemplo, em uma recente declaração do Papa: “O corpo humano não é um instrumento de prazer, mas sim o lugar de nosso chamado ao amor, e no amor autêntico não há lugar para luxúria” (apud GLASS, 2018). Na mesma ocasião, o mais importante líder religioso do mundo afirmou que a forma elementar do matrimônio é o casamento heterossexual, que respeita a “polaridade masculina e feminina”. Ou seja, ipsis litteris a moral denunciada por Freud como inexequível há quase um século.

Não parece casual que essa instituição, que visa regulamentar do modo mais estrito, repressor e normativo a vida sexual de seus fiéis, seja a fonte recorrente de casos de abuso sexual contra crianças, a ponto de o papa ter que assumir e pedir desculpas publicamente (PIMENTEL, 2018) por milhares e milhares de casos ao redor do mundo, envolvendo todos os níveis da hierarquia eclesiástica. É, ao mesmo tempo, uma brutal confirmação da constatação de Freud sobre a impossibilidade de levar esse programa adiante, mas também da hipocrisia dessa moral e da conivência de suas transgressões1. Cabe notar, nesse exemplo, que o retorno do recalcado na forma de agressão sexual a crianças não é apenas um exemplo de que a norma “se contorna” de forma hipócrita, mas que ela se torna o fermentador de uma sexualidade violenta e perversa, que toma um outro vulnerável como objeto sexual à revelia.

Freud também aponta a necessidade de reprimir a pulsão de morte dirigida ao outro, ou seja, a agressividade: “A existência desse pendor à agressão, que podemos sentir em nós mesmos e justificadamente pressupor nos demais, é o fator que perturba nossa relação com o próximo e obriga a civilização a seus grandes dispêndios” (FREUD, 1930, p. 77).

O delicado balanço entre renúncia pulsional e harmonia social

É simples pressupor que, quanto maiores forem os ganhos individuais que cada um percebe na vida em sociedade, tanto mais factível será sua renúncia pulsional em nome da coesão social. O princípio de realidade dita ao indivíduo, que tem a segurança de sua existência assegurada pelo grupo, que se esforce para sobrepujar a satisfação de seu princípio de prazer imediato, ligado às pulsões sexuais ou agressivas.

Se, portanto, nos encontramos em um momento de crise social, em que o grupo não se mostra capaz de garantir nossa existência como antes, a coesão desse tecido e do equilíbrio dessa renúncia individual em nome do coletivo começa a ser questionada. Nas palavras de Freud, “(...) as relações mútuas entre os homens são profundamente influenciadas pela medida de satisfação dos impulsos possibilitada pelos bens existentes” (FREUD, 1927, p. 22).

Vivemos em uma sociedade de classes, em que os bens existentes e, portanto, a possibilidade de satisfação pulsional é desigual aos indivíduos (sem falar na manipulação das pulsões e as transformações de “necessidades” que se alteram de acordo com os padrões sociais existentes). Contudo, momentos de prosperidade podem garantir o mínimo para que a coesão social se mantenha, contanto que a percepção de que “a vida vai melhorar” seja um horizonte constante. Os pais muitas vezes estão dispostos a maiores e mais duras renúncias se vislumbram a perspectiva de que seus filhos tenham uma vida com menos renúncias, projetando na próxima geração uma satisfação da qual abdicam – transferem para seus filhos, como uma projeção narcísica de si mesmos, a realização que almejam. Assim, o Brasil manteve um equilíbrio e uma relativa “paz social” ao longo do último período, e, não à toa, identificando a gradual melhora de vida à atuação de um líder carismático – que, como desenvolve Freud, cumpre papel análogo ao pai na vida psíquica das massas –, com uma expressiva parcela da população vendo a volta de Lula como perspectiva de saída para a crise.

Ao falar das renúncias impostas pela vida em sociedade, Freud diz:

Quanto às limitações que se aplicam apenas a classes determinadas da sociedade, nos deparamos com condições graves e também jamais ignoradas. É de se esperar que essas classes desfavorecidas invejem as vantagens das privilegiadas e façam de tudo para se livrar de seu próprio acréscimo de privações. Quando isso não for possível, uma medida constante de descontentamento se imporá dentro dessa cultura, o que pode levar a rebeliões perigosas. Se, porém, uma cultura não conseguiu ir além do ponto de que a satisfação de certo número de seus membros tenha como pressuposto a opressão de outros, talvez a maioria – e esse é o caso de todas as culturas atuais –, é compreensível que esses oprimidos desenvolvam uma hostilidade intensa contra a cultura que por meio de seu trabalho eles mesmos possibilitam, mas de cujos bens lhes cabe uma cota muito pequena. (...) Não é preciso dizer que uma cultura que deixa insatisfeito um número tão grande de membros e os incita à rebelião não tem perspectivas de se conservar perpetuamente, nem o merece. (FREUD, 1927, p. 29-30)

Assim, podemos concluir que, quanto mais aguçada a crise, e quanto mais os efeitos dela se sintam sobre os ombros dos mais pobres, maior será o nível de esgarçamento social, e menor a disposição à renúncia pulsional. Abre-se um cenário de descontentamento social em que, se não é apresentado nenhum projeto coletivo e social capaz de projetar uma recompensa a uma renúncia que é maior a cada dia, haverá uma predisposição maior à manifestação das pulsões individuais se sobrepondo às renúncias feitas em nome do coletivo.

Crise social no Brasil e a reorganização da repressão no jogo político

É nesse contexto que um projeto político de características muito particulares, e de um discurso muito distinto do que até então se colocava como o “acordo mínimo” social, se tornou massivo no Brasil: o “bolsonarismo”. Para discutí-lo, recorremos a definições que Vladimir Safatle aponta como características do fascismo (SAFATLE, 2018).2

Em primeiro lugar, aponta o “culto à violência”. Diz ele:

trata-se de acreditar que a impotência da vida ordinária e da espoliação, ela vai ser vencida através da força individual, daqueles que, enfim, teriam o direito de sair armados (...) de falar o que quiser sem se preocupar com aquilo que eles chamam de ‘ditadura do politicamente correto’.

Ou seja, frente a uma percepção social de que a renúncia à agressividade vem sendo paga com a agressão – por meio de assaltos, desemprego, corrupção estatal ou outro tipo de violência – o que o líder autoriza é a libertação de minha agressividade individual. Na livre expressão desta eu posso retomar, por minhas próprias forças – mas com a legitimação do Estado – o “meu direito” aviltado. É, na perspectiva civilizacional colocada por Freud, um claro retrocesso, em que o “direito individual” se impõe pela força. Como afirma Safatle, “o fascismo, nesse sentido, oferece uma certa forma de liberdade”; liberdade de não reprimir minha agressividade pulsional. É a “liberação da violência por aqueles que não aguentam mais ser violentados”.

Contudo, a liberação dessa agressão abrange um escopo que é conjugado com o acréscimo da repressão sexual ao “desviante”, que terá também uso político. O discurso e a mobilização afetiva que dão coesão a uma massa, como aponta Freud, exigem sempre a hostilização de um inimigo, cuja existência, ao mesmo tempo em que dá o sentido de unidade ao grupo, é visto como uma ameaça à coesão deste.

Aqui, um discurso repetido à exaustão transformou em “inimigos” certos grupos sociais. Em primeiro lugar, cria-se um inimigo responsável pela situação de miséria: com diversos atores, e vindo desde 2015 sendo elaborado nos distintos níveis de comunicação de massas – televisões e jornais por um lado, e redes sociais por outro – se estabeleceu como o culpado por todos os males o PT, seus governos, seus simpatizantes. A força do discurso deriva não apenas de sua repetição incessante, mas de tomar elementos da realidade – os escândalos de corrupção nas estatais, por exemplo – para se forjar sobre eles uma narrativa muito mais abrangente que sustenta o ódio, peça fundamental para dar contornos e coesão ao grupo, cujo propósito passa a ser se opor aos “petistas” e “esquerdistas”. Aqui, também, é fundamental a identificação de qualquer membro não pertencente ao grupo bolsonarista como pertencente ao “outro grupo”. Isso garante não apenas a coesão do grupo, mas a anulação da validade do discurso do outro. Essa simplificação da consolidação de um “nós” versus um “eles” é fundamental para ver os dois grupos como uma massa homogênea, dando-lhe uma consistência imaginária – no sentido de Lacan – aumentando a identificação do grupo ao qual se pertence e a impenetrabilidade a argumentos que possam interferir em sua coesão. Desta forma, enunciadores tão díspares quanto Folha de S. Paulo, The Economist, Miriam Leitão, Francis Fukuyama e até Marine Le Pen são taxados como “esquerdistas”3.

Pelo lado da repressão sexual, o apoio ao acréscimo da agressividade e a legitimação da violência se baseou em sólidos tabus, atribuindo ao “outro” tudo o que seja hostil às normas morais do grupo: da homossexualidade, transgeneridade e feminismo, à pedofilia e o incesto4. Para tornar mais virulenta a reação, atribui-se ao grupo antagônico o propósito de “doutrinar as crianças” a se enquadrarem nas condutas sexuais desviantes, o que os coloca como ameaçadores dos valores morais – que passam a ser os pilares do mito de uma ordem capaz de trazer novamente a harmonia e coesão social. A violência contra esses grupos é legitimada, o que é visto como a proteção frente à uma “ameaça moral”. O medo das próprias pulsões sexuais recalcadas também é expresso como ódio, e, assim, instrumentalizado politicamente.

Sobre isso, Safatle argumenta que “Essa insensibilidade [em relação à violência com grupos vulneráveis] expressa um desejo inconfesso de que as estruturas de visibilidade da vida social não sejam alteradas”, ou seja, que a “gramática do visível” mantenha de fora, como não reconhecido, não dito, impossibilitado de existir, todo aquele que foge à norma repressiva ditada por essa moral. Daí que diga inclusive que qualquer identidade dissonante é uma “invenção”, como está implicado no conceito de “ideologia de gênero”; ou que as crianças tornam-se gays ou trans por serem “doutrinadas”, e não por seu desejo.

Trata-se, em primeiro lugar, frente à insegurança do desemprego, da falta de direitos sociais, da instabilidade social, de dar ao medo a resposta de um “retorno a um pai protetor”, sob a forma de um líder pretensamente forte, severo e “incorruptível”; isso responde também ao medo que a mudança trazida pela “erosão dos valores tradicionais” traz. A simbologia criada aí gera uma coesão entre o grupo, e uma ilusão de proteção sob a direção do líder. Garantida a coesão em torno do medo, e da promessa de redenção frente à situação de insegurança, a manipulação é muito mais fácil, e sua crença na agressividade dirigida aos grupos “culpados” pode ser estimulada. É um jogo com a tendência social paranoica que surge da situação de instabilidade, mas que é reforçada e instrumentalizada por esse discurso político no qual a “nossa” identidade ameaçada encontra um inimigo responsável por sua desagregação, e que deve, portanto, ser destruído.

Também se vê como “aceitável” abrir mão da liberdade e da responsabilidade por seu destino diante da tutela do líder, que tomará as decisões. É uma infantilização semelhante à descrita por Freud nas religiões. É pela manipulação dos afetos, muito mais do que por qualquer argumento, que se obtém o efeito político desejado. Assim, também se obtém o efeito de “blindagem” contra qualquer argumentação oposta.

Politicamente, o que garante a adesão de massa a essa ideologia, é a canalização da revolta latente com o atual estado de coisas. O bolsonarismo não poderia ser criado artificialmente, e duas pré-condições histórico-sociais são a base para sua ascensão como “porta-voz” dessa revolta: a crise econômica e a traição dos que antes eram vistos como os representantes políticos dessa massa. É no caldo de cultura do ódio ao PT – ainda que, como apontamos, a figura paterna de Lula se mantenha fortemente preservada em meio a essa erosão – e da desagregação do tecido social, do medo, do desemprego, da violência, que surge essa revolta. E, como aponta Safatle, trata-se da “colonização do desejo anti-institucional pela própria ordem”. A revolta contra as instituições de um regime político no qual a população não se vê representada, paradoxalmente é capitalizada pela crença de que um governo forte, autoritário e supostamente “livre e independente” (como dizia a propaganda) vai restaurar a “ordem” por meio de uma “liderança acima da lei”, que pode expressar livremente aquilo que não pode ser dito. Aquilo, também, que “eu queria dizer mas que é vetado pela Lei”.

Assim, como aponta Safatle, é importante que o líder seja “cômico”, uma “mistura de militar e palhaço de circo”, pois assim suas proposições podem “circular com baixa fricção”, como “brincadeiras” (Freud fala, sobre o chiste, que mensagens que não seriam toleradas pela censura podem circular sob a proteção da “piada”). Mas “o que é real e o que é bravata” fica a critério de cada um: se eu for gay, posso dizer que sua homofobia é “bravata”. Mas só o líder sabe até onde está disposto a concretizar seu discurso – ainda que, é claro, isso dependa de outros poderes reais que estão em jogo.

Desde que a primeira versão deste trabalho foi escrita, ainda antes da eleição de Bolsonaro, diversos eventos corroboraram sua perspectiva. Entre os muitos casos, podemos citar o da empresária Elaine Perez Caparroz, de 55 anos, que foi espancada por quatro horas por Vinícius Batista Serra, de 27 anos, após um encontro que marcaram pela internet. O agressor diz ter tido um “surto” e não se lembrar do ocorrido (LEMOS; BARBON, 2019). O caso é uma expressão que ganhou visibilidade de um processo de aumento da violência misógina cujo alcance ainda está por se ver. Na primeira semana de 2019 foram registrados 21 feminicídios e 11 tentativas (PINA, 2019); até o dia 4 de fevereiro, eram 126 mortes e 67 tentativas registradas (BOND, 2019). Outro exemplo de “liberação” dessas pulsões agressivas legitimadas pelas mudanças sociais é o massacre na escola de Suzano com 10 vítimas fatais até o momento. Após o fato, diversos outros casos de jovens planejando ações semelhantes vieram à tona: em Pontalina (GO) (ADOLESCENTE, 2019), Bom Jesus de Goiás (GO) (CAVALCANTI, 2019), Porto Alegre (RS) (GROSS, 2019), Rio de Janeiro (RJ) (JOVEM, 2019) e Nova Iguaçu (RJ) (MAGALHÃES, 2019) são alguns exemplos. Confome apontou o psicanalista Christian Dunker em entrevista após o atentado em Suzano, há

(...) uma mutação do discurso dominante sobre o que é a violência, e o que é a violência “aceitável”, “compreensível” ou “justificável” dentro da sociedade brasileira. Isso altera a nossa realidade psíquica. E essa mutação promete ser muito nefasta, carregando, inclusive, um sentimento de escalada: a violência vem aumentando, num ritmo acelerado e errático. (SAYURI, 2019)

Sintetizando, no cenário atual a crise das estruturas sociais abre espaço à emergência de novas perspectivas de laço social, e o projeto político de extrema-direita de Bolsonaro vem se mostrando apto a instrumentalizar a revolta social e a agressividade para fortalecer sua figura de líder autoritário (pai) capaz de “apontar uma saída”. Contudo, as já evidentes dissensões em seu bloco político colocam uma dúvida sobre a perspectiva de que seja capaz se manter nesse lugar simbólico.



Referências bibliográficas:

- ADOLESCENTE que planejava atacar escola é apreendido em Goiás. In: O Globo. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/adolescente-que-planejava-atacar-escola-apreendido-em-goias-23532739. Acessado em 30/03/2019.

- BOND, L. Número de assassinatos de mulheres no Brasil em 2019 preocupa CIDH. In: Agência Brasil. Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2019-02/numero-de-assassinatos-de-mulheres-no-brasil-em-2019-preocupa-cidh. Acessado em 30/03/2019.


- CAVALCANTI, I. Segundo caso em dois dias: jovem é apreendido suspeito de ameaçar ataque em escola no interior de Goiás. in: O Popular. Disponível em: https://www.opopular.com.br/noticias/cidades/adolescente-%C3%A9-apreendido-ap%C3%B3s-amea%C3%A7ar-ataque-em-escola-em-goi%C3%A1s-1.1755177. Acessado em 30/03/2019.

- EL PAÍS. Joice Hasselmann, WhatsApp e a eleição onde o crime compensa. Artigo: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/28/opinion/1540732323_256151.html?id_externo_rsoc=TW_CC. Acessado em 2/11/18.

- FREUD, S. A moral sexual “cultural” e o nervosismo moderno (1908). In: Obras Completas, volume 8. São Paulo: Cia das Letras, 2015.

-__________. Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico (1911). In: Obras Completas, vol. 10. São Paulo: Cia. das Letras, 2010.

-__________. Totem e Tabu (1913). In: Obras Completas, volume 11. São Paulo: Cia. das Letras, 2012.

-__________. A história do movimento psicanalítico (1914). In: Obras Completas, vol 14. Imago.

-__________. A repressão (1915). In: Obras Completas, vol. 12. São Paulo: Cia das Letras, 2010.

-__________. Conferências introdutórias à psicanálise 19. Resistência e repressão (1917). In: Obras Completas, vol. 13. São Paulo: Cia. das Letras, 2014.

-___________. Psicologia das massas e análise do eu (1921). São Paulo: L&PM Pocket, 2013.

-___________. O futuro de uma ilusão (1927). São Paulo: L&PM Pocket.

-___________. O mal-estar na civilização (1930). In: Obras Completas, vol. 18. Sâo Paulo: Cia. das Letras, 2010.

- GLASS, B. El papa dice que “el cuerpo humano no es instrumento de placer”. Artigo de La Izquierda Diario: http://laizquierdadiario.com/El-papa-dice-que-el-cuerpo-humano-no-es-instrumento-de-placer. Acessado em 2/11/18.

- GROSS, L. Ameaça de ataque no Campus do Vale da UFRGS é registrada em redes sociais. In: Rádio Guaíba. Disponível em: https://guaiba.com.br/2019/03/20/ameaca-de-ataque-no-campus-do-vale-da-ufrgs-e-registrado-nas-redes-sociais/?fbclid=IwAR0jfZRJCeYwUmYbjY5I3zHgXpHnxNIKxVJTFWVBvwc94AOGZK_hBYhP_0M Acessado em: 30/03/2019.

- JOVEM é apreendido depois de tentar esfaquear alunos no Rio. In: Revista Fórum. Disponível em: https://www.revistaforum.com.br/jovem-e-apreendido-depois-de-tentar-esfaquear-alunos-no-rio/ Acessado em 30/03/2019.

- LEMOS, M; BARBON, J. Mulher fica desfigurada após apanhar de homem que conheceu na web. In: Folha. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/02/mulher-fica-desfigurada-apos-apanhar-de-homem-que-conheceu-na-web.shtml. Acessado em 30/03/2019.

- MAGALHÃES, M. I. Adolescente que planejava ataque à escola é apreendido em Nova Iguaçu. In: O Dia. Disponível em: https://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2019/03/5630239-adolescente-que-planejava-ataque-a-escola-e-apreendido-em-nova-iguacu.html. Acessado em 30/03/2019.

- PIMENTEL, M. Abuso sexual na Igreja: a retratação e os ataques ao papa. Artigo de Nexo Jornal: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2018/09/04/Abuso-sexual-na-Igreja-a-retrata%C3%A7%C3%A3o-e-os-ataques-ao-papa. Acessado em 2/11/18.

- PINA, R. Pelo menos 21 casos de feminicídio ocorreram na primeira semana de 2019. In: Brasil de Fato. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2019/01/08/pelo-menos-21-casos-de-feminicidios-ocorreram-na-primeira-semana-de-2019/. Acessado em 30/03/2019.

- REVISTA FÓRUM. Pesquisa aponta que 83,7% dos eleitores de Bolsonaro acreditaram no “kit gay”. Artigo: https://www.revistaforum.com.br/pesquisa-aponta-que-837-dos-eleitores-de-bolsonaro-acreditaram-no-kit-gay/. Acessado em 2/11/18.

- ROUDINESCO, E.; PLON, M. verbete: recalque. In: Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahat Editor, 1998.

- SAFATLE, V. O que é fascismo, com Vladimir Safatle. In: TV Cult (canal de YouTube) https://www.youtube.com/watch?v=_ypurfdlPmU&feature=youtu.be. Acessado em: 2/11/2018.

- SAYURI, J. “Algo se alterou na violência brasileira”, diz psicanalista. in: Nexo. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2019/03/14/%E2%80%98Algo-se-alterou-na-viol%C3%AAncia-brasileira%E2%80%99-diz-psicanalista. Acessado em: 30/03/2019.

- TRINDADE, N; MONTEIRO, T. Militares entram na mira de ‘guru’ de Bolsonaro. In: Estadão. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,militares-entram-na-mira-de-guru-de-bolsonaro,70002759116. Acesso 30/03/2019.



1 No mesmo trecho, Freud diz: “A sociedade civilizada [no caso citado, as cúpulas das igrejas] viu-se obrigada a fechar os olhos para muitas transgressões que, segundo suas normas, deveria punir”.

2 Apesar de não considerarmos o governo de Bolsonaro como “fascista” por não atender às condições sociais que engendraram essa forma política particular nas primeiras décadas do século XX, essa é uma discussão que extrapola os limites desse trabalho. Utilizamos a fala de Safatle para debater as características de seu projeto político conforme nos parece pertinente.

3 Expressivamente, após o bolsonarismo ser colocado no governo e, consequentemente, mostrar suas alas e fissuras internas, a primeira reação hostil de um setor bolsonarista contra o outro (Olavo de Carvalho contra Mourão) foi a de tentar identificá-lo a valores atribuídos ao “outro” imaginário, o “inimigo”. Disse o “guru”: “Por que, durante a campanha, o general Mourão jamais mostrou sua verdadeira face de desarmamentista, de adepto do abortismo, de protetor de comunistas, de inimigo visceral do bolsonarismo, de amante da mídia inimiga? Ele fingiu-se de companheiro fiel até chegar ao cargo” (TRINDADE; MONTEIRO, 2019).

4 A imensa influência que isso teve nas eleições pode se vislumbrar por meio de pesquisa que afirma que 83,7% dos eleitores de Bolsonaro acreditaram na sua versão sobre o “kit-gay” que circulou nas redes. (REVISTA FÓRUM, 2018). Outra pesquisa aponta esse número como 36% do eleitorado total, enquanto 15% disseram acreditar que Haddad defendeu o incesto em um livro de sua autoria. (EL PAIS, 2018).



domingo, 28 de junho de 2020

Orgulho LGBT: Em 1935, Freud já dizia que a homossexualidade não era “doença” e não devia ser “curada”

Trazemos aqui uma carta de 1935, escrita por Sigmund Freud, pai da psicanálise – e, portanto, da psicologia moderna – em resposta à carta de uma mãe que apela à ajuda da análise para que seu filho seja “curado”. Reproduzimos abaixo a carta na íntegra, seguida de um breve comentário:

9 de abril de 1935

Professor Dr. Freud

Cara Senhoa [NOME APAGADO]

Eu posso deduzir a partir de sua carta que seu filho é homossexual. Me impressiona muito o fato de que você mesma não mencione esse termo em seu relato sobre ele. Poderia perguntar por que o evita? A homossexualidade seguramente não é uma vantagem, mas não é nada de que se deva ter vergonha, nenhum vício, nenhuma degradação, não pode ser classificada como uma doença; nós a consideramos como uma variação da função sexual produzida por uma certa interrupção do desenvolvimento sexual. Muitos indivíduos altamente respeitáveis da antiguidade e dos tempos modernos foram homossexuais, alguns dos maiores homens entre eles (Platão. Michelangelo, Leonardo da Vinci, etc.). É uma grande injustiça perseguir a homossexualidade como um crime e uma crueldade também. Se você não acredita em mim, leia os livros de Havelock Ellis.

Ao me perguntar se eu posso ajudar você quer saber, eu suponho, se eu posso abolir a homossexualidade e fazer com que a heterossexualidade normal tome seu lugar. A resposta é, de um modo geral, que não podemos prometer alcançar isso. Em um certo número de casos somos bem sucedidos em desenvolver os embriões frustrados de tendências heterossexuais, que estão presentes em todo homossexual; na maior parte dos casos não é mais possível. É uma questão de como é e que idade tem o indivíduo. O resultado do tratamento não pode ser previsto.

O que a análise pode fazer por seu filho está em outro caminho. Se ele está infeliz, neurótico, dilacerado por conflitos, inibido em sua vida social, a análise pode trazer a ele harmonia, paz de espírito, plena eficiência, permaneça ele um homossexual ou não. Se você decidir que ele deva se analisar comigo – o que não espero que você faça – ele deve vir a Viena. Eu não tenho intenção de sair daqui. Contudo, não me negligencie sua resposta.

Sinceramente, com os melhores votos,

Freud.

P.S. Eu não encontrei dificuldade em compreender sua caligrafia. Espero que você não ache minha letra e meu inglês uma tarefa mais difícil.


fac-símile da carta de Freud. (a carta foi traduzida da versão original em inglês que pode ser lida aqui.

A carta foi tornada pública ao ser enviada anonimamente ao sexólogo americano Alfred Charles Kinsey em dezembro de 1949, acompanhada do seguinte bilhete:

“Caro Dr. Kinsey: envio aqui uma carta de um Grandioso e Bom homem que você pode guardar. De uma mãe agradecida.”

Não é possível aqui desenvolver toda a posição de Freud sobre a homossexualidade (pode-se ler um pouquinho mais aqui), e por essa carta podemos perceber já que há muitas concepções que estão francamente equivocadas (o que é de se esperar, considerando que a carta foi escrita em 1935).

Contudo, cabe destacar que há quase cem anos Freud já rejeitava como absurda a noção de que a homossexualidade fosse uma doença ou que merecesse algum tipo de “tratamento” ou “cura”. Pelo contrário, Freud enfrentou grande parte das ideias hegemônicas sobre a sexualidade vigentes na popular pseudo-ciência da “sexologia” do século XIX, e foi por isso duramente criticado.

Naquele período, os sexólgos classificavam os homossexuais, bem como todos os que tivesse um comportamento sexual “desviante” da norma heterossexual, monogâmica e de acordo com os preceitos morais burgueses da época como uma vítima de uma “degeneração” que os levava a tais comportamentos. Freud, em seus “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, não apenas combateu energicamente essa noção, mas ainda enfiou o dedo na ferida mais a fundo: é nesse texto que estão desenvolvidas pela primeira vez suas concepções fundamentais de que as crianças possuem sexualidade desde a mais tenra idade (ideia que gerava arroubos de ira aos moralistas e puritanos da época, bem como certamente a certos “psicólogos” e moralistas como MBL, Bolsonaros, defensores do Escola Sem Partido de hoje).

Além disso, Freud afirmava que todas as crianças possuem uma sexualidade “perversa polimorfa”, ou seja, que estão disponíveis e abertas para todas as formas de sexualidade, e que é o desenvolvimento psíquico posterior (o atravessamento do chamado “Complexo de Édipo”, como Freud desenvolveria depois) que leva à interdição de certas vias de satisfação sexual e à condução à heterossexualidade. Assim, Freud é o primeiro e demonstrar que a bissexualidade seria efetivamente a forma “inata” da sexualidade humana. O que lhe cabe de conservador e se mostra no texto – e que caberá ao desenvolvimento posterior da psicanálise resolver – é a noção de que há um desenvolvimento “normal” da sexualidade, e que as demais formas seriam algum tipo de interrupção ou fixação em determinado estágio do desenvolvimento.

Contudo, em nenhum momento, como fica claro na própria carta, isso leva Freud a considerar que a homossexualidade seria uma “degeneração”, “doença” ou que em qualquer forma necessitária de cura. Nisso, aliás, ele estava acompanhado por outros nomes importantes do estudo da sexualidade em sua época, como o citado Havelock Ellis ou Magnus Hirschfield. Tal concepção de Freud, evidentemente, poderia ser ampliada para as questões da identidade de gênero, que ainda hoje sofrem a patologização por parte da medicina. Vale lembrar que apenas em 1990 a Organização Mundial de Saúde deixou de considerar a homossexualidade como um “transtorno psíquico”, como fazem ainda hoje com as identidades trans.

Em tempos sombrios que o judiciário e seu poder arbitrário cumprem o nefasto papel de impor tamanho retrocesso ao permitir que psicólogos queiram “reeducar” a sexualidade de seus pacientes, abrindo a porta para abusos imensos contra a população LGBT, é fundamental mostrarmos que não há absolutamente nada no campo do conhecimento psicológico que corrobore essas atitudes monstruosas. E que o que cabe aos psicólogos é lutar pela plena liberdade de todos, combatendo qualquer tipo de restrição, de criminalização ou de "doutrinação psíquica".

A fraude da psicofarmacologia (parte 2)

créditos da foto: iStock/Getty Images 

Continuação de A fraude da psicofarmacologia (parte 1)

A “explicação científica” da psiquiatria biológica

Não desenvolveremos aqui uma crítica mais profunda ao modelo científico por trás da “revolução psicofarmacológica”, o que pretendemos fazer em um próximo artigo, mas apenas exporemos a própria hipótese da chamada “psiquiatria biológica” e algumas das principais evidências de sua falência completa. Como dissemos, as drogas precederam a teoria. Mas, em meio ao boom de vendas dos remédios, alguns cientistas procuraram encontrar algum fundamento científico que justificasse tamanho sucesso comercial (inclusive porque isso fortaleceria sua propaganda). Surgiu aí a teoria do desequilíbrio químico do cérebro. Em um cérebro que constitui um órgão humano de uma complexidade inacreditável, se aventou, a partir da medição da quantidade de neurotransmissores como a dopamina e a serotonina, que aí residisse a causa das doenças mentais. Como afirmou o próprio Joseph Schildkraut, em 1965, num dos primeiros artigos que sintetiza a teoria dos desequilíbrios químicos, essa hipótese era “se tanto, uma supersimplificação reducionista de um estado biológico muito complexo” (1).

O desenvolvimento desse reducionismo afirmou que os pacientes deprimidos sofriam de uma falta de serotonina, enquanto a esquizofrenia era uma decorrência do excesso de dopamina, para simplificar. Whitaker relata diversos estudos: o de 1969 feito por Malcolm Bowers relata que níveis de serotonina mais baixos em oito pacientes deprimidos (todos já expostos a medicação) não eram significativamente mais baixos; ele realiza um estudo mais aprimorado em 1974 e chega à conclusão de que os níveis eram normais em pessoas deprimidas. Em 1971, outro estudo afirma que a diferença dos níveis de serotonina entre deprimidos e grupo de controle não era “estatisticamente significativa”. Em 1974, pesquisadores da Universidade da Pensilvânia reviram a literatura utilizada por Schildkraut para levantar a hipótese do desenvolvimento da depressão a partir da inibição das monoaminas cerebrais (serotonina, dopamina e norepinefrina) e concluíram que os dados utilizados não permitiam corroborar teoria (2).

E, apesar das evidências todas contrárias à teoria do desequilíbrio químico, a “verdade” que corroborava o lucro farmacêutico precisava vencer: assim, em 1975, um novo estudo de Marie Asberg novamente procurou “provar” a hipótese serotoninérgica. 20 do 68 pacientes estudados sofriam baixos níveis de serotonina (29%). Além disso, de acordo com o estudo, esses 20 seriam “mais suicidas” do que os outros (esses critérios eram estabelecidos com base em questionários a respeito de sintomas respondidos pelos pacientes), e dois se suicidaram efetivamente.

Já seria um absurdo essa “prova” por si só: que “quase 30%” dos indivíduos deprimidos tivessem uma baixa taxa de serotonina não significaria muito. Mas era ainda pior: Whitaker reviu o estudo e comparou as taxas de serotonina dos grupos de pacientes deprimidos e do grupo de controle utilizado por Asberg: a curva de distribuição era praticamente idêntica. 29% dos deprimidos tinha baixa serotonina, enquanto no grupo de controle essa taxa atingia 25%. O nível médio de serotonina no grupo de controle era de 20 nanogramas de 5-HIAA (produto da metabolização da serotonina); já no grupo dos deprimidos, mais de metade dos indivíduos (37 de 68) tinham níveis acima desse valor. Sobrepondo as curvas de distribuição de serotonina nos grupos de pacientes deprimidos e no grupo de controle, via-se que eram praticamente idênticas.

Whitaker expõe o ridículo dessas “provas” mostrando que, no Japão, os cientistas tinham uma hipótese oposta – de que a depressão era causada por um excesso de serotonina nas fendas sinápticas – e que poderiam perfeitamente usar o estudo de Asberg como uma “prova” de sua teoria (já que 24% dos pacientes deprimidos no estudo tinham taxas altas de serotonina) (3). A única prova é que não havia prova alguma. Poderíamos citar diversos outros estudos que comprovam exatamente isso. Como afirmou o psiquiatra David Healy, autor de diversos livros sobre a história da psiquiatria, “A teoria serotoninérgica da depressão é comparável à teoria masturbatória da loucura” (4).


A "explicação científica" dos transtornos mentais logo se popularizou graças ao esforço "educativo" da indústria farmacêutica

Em relação à teoria dopaminérgica, Whitaker faz uma exposição semelhante, resgatando estudos que mostram a completa falácia dessa hipótese. Contudo, não apenas essas teorias, exaustivamente comprovadas como falsas, continuam a ser marteladas nas cabeças de estudantes de medicina, na imprensa, na cabeça de pacientes e do público leigo, como “novas teorias” do desequilíbrio químico continuam sendo o fundamento “científico” para novas drogas, novas doenças, novos tratamentos. É o caso do Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), um diagnóstico relativamente recente que vêm sendo a base “clínica” e “teórica” para que milhões de crianças passem a tomar Ritalina. E, sabe de onde vem a teoria de que o TDAH é causado por níveis baixos de dopamina? Do fato de que a Ritalina aumenta os níveis de dopamina... Assim, o procedimento padrão da indústria psicofarmacêutica tem sido o mesmo desde os anos 1950: “descobre-se” um diagnóstico e uma droga para trata-lo (não necessariamente nessa ordem); em seguida, se estuda como a droga age nos neurotransmissores e, enfim, se informa amplamente que a “causa” da doença é o efeito oposto ao da droga que já se utilizava para trata-la: ausência ou excesso de X neurotransmissores.

A “segunda onda” da “revolução psicofarmacológica”: aprimorando as fraudes (e os lucros)

A grande marca de uma suposta “renovação” do tratamento medicamentoso das doenças mentais com as drogas “de segunda geração” foi o lançamento do Prozac, em 1988. O mecanismo de investir pesado em propaganda e na ocultação de evidências científicas contrárias às suas drogas já havia sido assimilado pela indústria, e foi praticado novamente em uma escala muito maior. Seu modelo de diagnósticos foi todo revisto na edição de 1980 do DSM-III (Manual de Diagnósticos e Estatísticas da Sociedade Americana de Psiquiatria), o que será assunto para um próximo artigo. E o caminho do Prozac é ilustrativo dessa psiquiatria “renovada”.

Em 1977, a companhia Eli Lilly conduziu seu primeiro estudo em humanos com a Fluoxetina, substância que seria comercializada com o nome de Prozac e que deu origem aos ISRS (Inibidores Seletivos de Recaptação de Serotonina). “Nenhum dos oito pacientes que concluíram o tratamento de quatro semanas exibiu uma clara melhora induzida pelo medicamento”, como relatou o cientista Ray Fuller em 1978 a seus colegas da Eli Lilly. Ele também atestou que a fluoxetina havia causado “um número bastante grande de relatos de reações adversas”. Um paciente tivera um surto psicótico ao tomar a medicação e outros haviam sofrido de acatisia (inquietação motora acompanhada de sentimento de grande ansiedade, que aumenta sensivelmente os riscos de suicídio) (5).

Nada que uma pequena fraude metodológica não pudesse resolver: nos estudos seguintes, a Eli Lilly introduziu o uso de benzodiazepínicos (calmantes) para controlar a agitação. A fraude aí estava não apenas em falsear os efeitos colaterais, mas também em interferir completamente no controle dos resultados dos testes. A única preocupação era aprovar a comercialização do Prozac.


A popularização do Prozac o tornou parte da cultura pop. Poster do filme "Geração Prozac", baseado na autobiografia de Elizabeth Wurtzel

Mesmo assim os resultados foram ruins. Em 1985 o órgão alemão de licenciamento, o Bundersgesundheitsamt (BGA) emitiu seu parecer sobre os testes do Prozac, dizendo que a medicação era “totalmente inadequada para o tratamento da depressão” (6). Os motivos eram eloquentes: nas autoavaliações dos pacientes (as que não eram feitas pelos médicos contratados pela própria Eli Lilly) o medicamento produzia “pouca ou nenhuma resposta ou melhora no quadro clínico dos pacientes”. Já os efeitos colaterais eram bem expressivos: psicose, alucinações, aumento da ansiedade, agitação e insônia, “os quais, como efeitos adversos, ultrapassaram os níveis considerados aceitáveis pelos padrões médicos”, como disse o BGA. Mas o mais escandaloso era o fato de que o Prozac induzia ao suicídio, conforme relatou o BGA: “Foram feitas 16 tentativas de suicídio, duas delas com sucesso”. Um dos funcionários da Eli Lilly calculou, privadamente, que a incidência de atos suicidas entre os pacientes medicados com Prozac era 5,6 maior quando comparados com os que usavam outro medicamento ativo, a imipramina (7).

Isso levou à rejeição do registro da fluoxetina na Alemanha, e a Eli Lilly decidiu contar uma “verdade alternativa” para a FDA e conseguir registrar o medicamento nos EUA: os funcionários foram instruídos a registrar diversos efeitos colaterais causados pela droga como “sintomas de depressão”, fazendo com que fossem percebidos como parte da doença, e não como causados pelo remédio. Também os dados nas fichas dos pacientes trocaram o termo “ideação suicida” por “depressão”; e, ainda, quando os dados referentes aos testes alemães foram examinados, os funcionários da empresa “retiraram os casos [de suicídio] que julgaram não ser suicídios” (8).

Nos EUA, os testes controlados por placebo (administração de uma medicação sem princípio ativo para um grupo de controle) foram feitos em oito locais diferentes, e em quatro deles a fluoxetina não foi melhor do que o placebo. Nos demais, o resultado foi ligeiramente melhor do que o placebo. Além disso, em seis de sete estudos a imipramina tinha obtido resultado superior ao da fluoxetina. Dos pacientes que foram submetidos à medicação, 39 tinham desenvolvido surtos psicóticos, e mais de 1% ficaram maníacos ou hipomaníacos, entre diversos outros efeitos colaterais. Mesmo assim, o Prozac foi aprovado para comercialização em 1988. Em 1997, era o medicamento com maior número de queixas nos EUA, com 39 mil registros no programa MedWatch da FDA. As queixas incluíam centenas de suicídios além de muitos efeitos colaterais como depressão psicótica, mania, raciocínio anormal, alucinações, hostilidade, confusão, amnésia, convulsões, tremores e disfunção sexual. A FDA calcula que apenas 1% dos efeitos adversos chega a ser comunicado do MedWatch, e, portanto, se estima em 4 milhões de americanos que em apenas nove anos teve uma reação adversa, que poderia chegar ao suicídio, por efeito do Prozac.

Nada disso, no entanto, foi páreo para a quantidade de dinheiro investida para a publicidade do Prozac, o que incluía a “compra” de médicos renomados no meio acadêmico para que divulgassem “resultados científicos positivos” da fluoxetina, cursos de “conscientização popular” sobre os males da depressão, milhares de artigos na imprensa falando sobre a “revolução” da nova medicação, etc. As demais empresas do ramo, aprendendo com a fórmula de sucesso do Prozac, adotaram procedimentos semelhantes. Novas drogas como o Xanax (alprazolam), um novo ansiolítico, foi não apenas lançado com grande estardalhaço, mas também vendido como a “cura” para a “nova doença” da síndrome do pânico, que fora “descoberta” pelo DSM III em 1980. Em seguida, vieram os antipsicóticos atípicos. E por aí vai, até hoje, com novas “curas milagrosas” sendo descobertas dia a dia.

A iatrogenia em larga escala como resultado do “milagre psicofarmacológico”

O pior de tudo, no entanto, não é o fato de que essas falsas curas vêm nos enganando e lucrando bilhões. Mas sim o fato de que elas são iatrogênicas, ou seja, são elas mesmas causadoras de patologias. E vêm nos adoecendo cada vez mais. Pacientes que não são submetidos aos tratamentos medicamentosos têm melhor prognóstico, mais chances de se curar e de não ter recaídas ao longo da vida. Estudos de diversos tipos mostram isso, e até mesmo um estudo da OMS apontou que nos países pobres, como Nigéria e Índia, onde apenas 16% dos pacientes esquizofrênicos recebem tratamento medicamentoso regular, os prognósticos são muito melhores.

Como foi demonstrado exaustivamente ao longo de mais de cinquenta anos – e negado mil vezes pela indústria e seus mecanismos de propaganda – não existe absolutamente nenhuma comprovação de que haja qualquer distúrbio químico ou causa biológica para as doenças psíquicas. O dogma que é repetido mil vezes aos pacientes é uma farsa.

Mas o que alguns estudos comprovaram é o contrário: são as drogas que causam desequilíbrios e mesmo alterações fisiológicas degenerativas no cérebro. Por exemplo, na esquizofrenia, adventou-se a hipótese de que sua causa seria a do excesso de dopamina. Mas enquanto estudos tentavam demonstrar que seria esse o problema dos esquizofrênicos – com base justamente no fato de que os antipsicóticos bloqueavam os receptores de dopamina e assim diminuiriam sua atividade – outros estudos eram publicados e mostravam justamente que os níveis de dopamina dos esquizofrênicos eram normais (9).

Logo em seguida, novos estudos mostraram que o que ocorria ao administrar os medicamentos é que o cérebro reagia aumentando a quantidade de receptores de dopamina, numa tentativa do corpo de compensar os efeitos causados pelos remédios. Em 1982, um estudo concluiu que “os aumentos dos receptores só foram observados em pacientes em quem a medicação neuroléptica tinha sido mantida até a época da morte, o que indicou que eram inteiramente iatrogênicos [causados pela droga]” (10).

O mesmo tipo de reação foi observado em relação aos antidepressivos que aumentavam a taxa de serotonina: o corpo reage diminuindo os receptores desse neurotransmissor como uma forma de tentar compensar o efeito causado pelo remédio. A conclusão é que, enquanto se vende a imagem de que os remédios estariam “corrigindo” um desequilíbrio químico no cérebro, eles de fato são os causadores de desequilíbrios iatrogênicos.

O que os estudos sobre os resultados da administração dessas drogas aos pacientes mostram também são resultados muito diferentes dos que nos vendem os discursos midiáticos, médicos, publicitários. Os dados que embasaram os efeitos positivos dos remédios foram estudos feitos a curto prazo, ou estudos em que após o período inicial a medicação era retirada abruptamente. Eles levaram a duas conclusões: os medicamentos “funcionavam” (diminuíam os sintomas) melhor do que os placebos (simulacros de remédios sem princípio ativo para efeito de controle), e eles preveniam recaídas. Isso era uma “bênção” para a indústria farmacêutica, pois a partir daí a psiquiatria passou a “rezar a cartilha” de que os remédios deveriam ser mantidos “como a insulina de um diabético”. A indústria ganhava, a cada psicótico ou deprimido medicado, um “cliente para toda a vida”.

Mas o fato é que estudos mostraram que os pacientes que recebiam medicação tinham probabilidade muito maior de terem recaídas. Em estudos conduzidos em 1967, 1971 e 1977 sobre a clorpromazina os pesquisadores descobriram que apenas 7% dos que haviam recebido um placebo sofreram recaídas, comparados com 65% dos que tomavam mais de 500mg de clorpromazina antes da suspensão do medicamento; e que “a recaída tem maior gravidade durante a administração de drogas do que quando não é fornecida nenhuma medicação” (11). Ou seja, continuando ou não a tomar os remédios, a clorpromazina agravava a doença. Diversos outros estudos mostram como os resultados de pacientes não medicados são superiores aos dos medicados.


Propaganda de Thorazine (clorpromazina) falava sobre como a introdução do remédio diminuiu o número de tratamentos por eletrochoque nos hospitais.

Isso sem falar que os próprios efeitos do Thorazine (nome comercial da clorpromazina nos EUA) já eram muito questionáveis em si: desde intensas dores físicas até tornar pacientes em “zumbis” afetivamente, a lista de efeitos colaterais é imensa. A tal ponto que veio à tona na década de 1970 que o governo stalinista da URSS utilizada o Thorazine como método de tortura (o que evidentemente também ocorria, com esse medicamento e outros métodos como a ECT – eletro-convulso terapia – em todos os países que adotavam o modelo manicomial de tratamento). Outros efeitos gravíssimos ocorrem, como degeneração cognitiva e hiperssensibilização à psicose.


propaganda de Thorazine indicava o uso do remédio para casos de soluço crônico

No caso das benzodiazepinas, até hoje a classe de medicamentos calmantes de maior popularidade, com nomes comerciais como Alprazolam, Lorazepan, Frontal, Valium, Bromazepan, entre outros, os efeitos também são nefastos. Os estudos mostraram não apenas que a ansiedade que controlam nos primeiros usos volta de forma redobrada dentro de quatro a seis semanas de uso (12), como também pintaram um quadro bastante assustador dos problemas decorrentes do vício e das crises de abstinência. Entre os efeitos colaterais foram listados a ansiedade de rebote (o retorno da ansiedade a níveis mais altos do que antes da introdução da medicação), insônia, convulsões, tremores, dores de cabeça, embotamento da visão, tinidos auditivos, extrema sensibilidade a ruídos, sensação de insetos rastejando no corpo, pesadelos, alucinações, depressão extrema, despersonalização e desrealização (sensação de que o mundo externo é irreal) (13).

As pesquisas sobre os antidepressivos, em relação a seu resultado, foram semelhantes às conduzidas com os antipsicóticos, mostrando um efeito mínimo a curto prazo e a perspectiva de cronificação da doença, com mais episódios de recaída e menor perspectiva de melhora para os pacientes tratados com a medicação. Mesmo a ligeira vantagem dos remédios de primeira geração sobre os placebos foi desmentida por estudos conduzidos em 1982 em que um placebo ativo (que produzia algum efeito colateral) foi utilizado: em seis dos sete estudos, o resultado foi idêntico para a medicação e o placebo. Com a entrada da segundal geração a partir do Prozac, os resultadora foram ainda piores, pois as pesquisas mostraram menor eficácia dos medicamentos (além dos absurdos que foram ocultados e que listamos anteriormente).

Para termos uma breve dimensão dos efeitos iatrogênicos desses remédios, basta verificarmos que em 1955 havia 38.200 pessoas internadas por depressão nos EUA (1 a cad 4.345 habitantes). Hoje, a depressão é a principal causa de invalidez no país para pessoas entre 15 e 44 anos. Estima-se que a doença afete 15 milhões de americanos adultos e que 58% desse grupo esteja “gravemente prejudicado” (14). Uma doença que, antes da era psicofarmacológica, era considerada pouco frequente e de bom prognóstico, sendo que seus sintomas remetiam sem nenhum tipo de intervenção médica em uma quantidade muito alta de casos, como em um estudo de 1972 que dizia que 50% das pessoas hospitalizadas por depressão não tiveram recorrência da doença, e apenas 10% haviam se tornado cronicamente doentes (15).

Pacientes vão mal, lucros vão bem

Pode ser que para os pacientes o saldo dessa “revolução” medicamentosa tenha sido negativo. Mas os lucros da indústria atestam outro resultado, sendo que as dez maiores companhias farmacêuticas do mundo lucraram ao todo 89,8 bilhões de dólares apenas em 2013 (16). E era de se esperar, considerando que os medicamentos tornavam as doenças crônicas e criavam “clientes vitalícios”.

Os investimentos em propaganda também atestam a importância que os laboratórios dão à “educação” dos médicos, seus principais vendedores: uma pesquisa de 2010 do Conselho Regional de medicina de São Paulo (Cremesp) aponta de 80% dos médicos paulistas recebem representantes dos laboratórios (mais conhecidos como “propagandistas”), e cada um destes visita de dez a vinte consultórios por dia. Nos EUA, essa estratégia de “marketing corpo a corpo” siginificou um gasto de quase 15 bilhões de dólares apenas em 2012 (17). A BBC fez um levantamento demonstrando que as dez maiores empresas farmacêuticas globais gastaram em 2013 um valor de 98,3 bilhões de dólares em marketing e vendas (18). Enquanto isso, no mesmo período, o gasto em pesquisa científica dessas mesmas companhias foi de 65,8 bilhões de dólares, ou seja, 33% a menos (19).

A natureza das informações prestadas nesse processo “educativo” são bastante duvidosas, no mínimo: em 2012 a GlaxoSmithKline foi condenada a pagar 3 bilhões de dólares por promover usos não aprovados dos antidepressivos Wellbutrin e Paxil.


Propaganda de Wellbutrin afirma que ele combate a depressão com "baixo risco de ganho de peso e efeitos colaterais sexuais".

Para “ganhar” os médicos, esses propagandistas não apenas levam suas “informações”, mas muitos “agrados” aos médicos: um levantamento feito na Califórnia mostrou que a GlaxoSmithKline estabelecia um limite de 2.500 dólares anuais gastos por médico com presentes; a Eli Lilly estabelecia esse valor em 3 mil dólares por médico (20). Viagens a congressos também são um “agrado” comum aos médicos: pesquisa do Cremesp de 2010 mostrou que um a cada dez médicos havia viajado no ano anterior para congressos com despesas pagas por laboratórios, e mais de um quarto participou de eventos “educativos” pagos pela indústria (21).

Contudo, essas são as despesas do “varejo” com os médicos. Para difundir as informações que desejam sobre os tratamentos que criam – e que evitem todos os dados que fornecemos acima – os laboratórios investem pesadamente em figurões da psiquiatria acadêmica para dar respaldo “científico” a seus remédios. Estes são chamados em memorandos internos das empresas de “Líderes Formadores de Opinião” (LFO). Vejamos apenas alguns de seus “cachês”:

Charles Nemeroff, chefe do departamento de psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de Emory, em Atlanta, ganhou pelo menos 2,8 milhões de dólares como palestrante e consultor de empresas farmacêuticas entre 2000 e 2007. 960 mil dólares foram apenas da GlaxoSmithKline pela promoção do Wellbutrin e do Paxil (sim, aqueles mesmos do processo de 3 bilhões citado ali acima). É co-autor do Manual de Psicofarmacologia da Associação de Psiquiatria Americana, o livro didático mais vendido em seu campo. Zachary Stowe, seu colega docente na Emory, recebeu 250 mil dólares também da GlaxoSmithKline entre 2007 e 2008 para promover o uso de Paxil por mulheres lactantes.


13.º Congresso Mundial de Biologia Psiquiátrica na Dinamarca dá uma dimensão dos eventos em que as maiores palestras são feitas por médicos patrocinados pela indústria farmacêutica

Outro palestrante da GlaxoSmithKline, que recebeu 1,2 milhão de dólares de 2000 a 2008 da empresa para promover o uso de estabilizadores de humor para transtorno bipolar, é Frederick Goodwin, ex-diretor do Instituto Nacional de Saúde Mental dos EUA (NIMH). Ele é co-autor do compêndio “Doença Maníaco-Depressiva: transtorno bipolar e depressão recorrente”, livro de referência sobre essa doença. Whitaker ainda destaca duas emblemáticas declarações de Goodwin: uma em seu programa de rádio “The Infinite Mind”, em setembro de 2005, quando disse que se crianças com transtorno bipolar não fossem tratadas seus cérebros poderiam sofrer lesões – uma dessas típicas informações absurdas e desprovidas de qualquer valor científico que levam os pais desesperados a colocar seus filhos à mercê dos psiquiatras e da indústria. A outra declaração, dada do New York Times, foi de que ao exercer sua atividade “educativa” remunerada para os laboratórios (entre os quais o GlaxoSmithKline é apenas um), ele estava apenas “fazendo o que fazem todos os outros especialistas da área”. Karen Wagner, diretora do departamento de psiquiatria da infância e da adolescência da Universidade do Texas, recebeu mais de 160 mil dólares entre 2000 e 2005 da GlaxoSmithKline para promover o uso de Paxil por crianças. Uma de suas atividades nesse sentido foi relatar resultados falsos de um ensaio pediátrico desse antidepressivo (22).

Essas são apenas pequenas amostras dos mecanismos que a psiquiatria vem utilizando, ao longo de décadas, para promover uma concepção médica que vem causando doenças e matando pessoas aos milhões, contribuindo para tornar as doenças mentais uma verdadeira epidemia social. A medicina do capital em pleno funcionamento.